Contos

Desbravamento

O velho trilho conduzia os vagões da locomotiva ao seu destino, enquanto a viagem prosseguia. Meus olhos estavam fixos no pequeno vidro da janela e meus pensamentos vagavam sobre as paisagens que passavam velozmente. De vez em quando, me deparava com uma casa perdida no meio daquela vegetação, mas ela surgia subitamente, dando a aparência que se movimentava no sentido contrário, passando por mim sem me encontrar e a velocidade não me permitia vislumbrar todo o panorama.
O barulho das rodas no trilho era estridente e o tempo passava na monotonia daqueles instantes. A minha luta para ver a realidade que estava passando era constante, porém ela escapava na rapidez daquela locomotiva e meu pensamento oscilava por entre interrogações acerca do que estava acontecendo, pois não via os detalhes das cenas que se dissipavam ante meus olhos.
Enquanto seguia a rotina da minha viagem, enfastiava-me ver passar o rastro que eu não percebia com clareza. Repentinamente, olhei pela janela e vi a fagulha que se desprendia da chaminé instalada no primeiro vagão, acompanhada da estridente buzina que sinalizava que a locomotiva ia parar. Então, decidi descer ali mesmo naquela estação.
Caminhei com muito esforço para ver o que encontrava por perto. A princípio, não vi mais que o solo árido e o deserto era minha companhia. Continuei insistindo na minha busca e logo encontrei vestígios de pegadas que me trouxeram disposição. Depois de alguns passos, me deparei com um poço e, observando seu aspecto, percebi que era novo. O brilho do ferro da roldana resplandecia aos meus olhos e o balde parecia que nunca havia sido usado, aproximei-me e – para matar a sede daquele momento – precisei de esforço para lançar o balde junto à corda que o prendia e então puxá-lo.
Depois, minha expectativa era continuar a caminhar para saber o que eu iria encontrar pela frente além do poço e do verde que cobria o inusitado lugar. E assim, fui tomada pela admiração do que agora podia contemplar; as árvores já não passavam por mim, pude descansar em suas sombras. Das rosas, pude extrair sua essência e penetrar no mistério de cada uma e não mais ver apenas sua penumbra sem identificar seus tipos e nuances. Pousei o olhar embevecido sobre as borboletas que executavam seu desprendido balé. Já era possível ouvir o canto dos pássaros e me deter nele, sentindo e identificando cada nota entoada. Os lugarejos que adentrei foram marcados por minhas pegadas, os casebres situados ao longo das matas revelavam suas histórias, seus sonhos e os detalhes das diferentes maneiras de viver a vida. Meus pensamentos incidiam sobre o que estava ao meu redor, e minha motivação era descobrir o que antes passava sem que eu pudesse definir.
O efêmero cenário se tornou território vivo e conquistado. Já não havia mais paisagens nas janelas, a locomotiva já não era meu meio de transporte. Agora, eu seguia meus pés para viver toda realidade que a estrada oferecia.

Kilvânia B. Gomes
 
Vestígios de um panorama

Num dia comum, a cidade despertou para acolher os pés que percorriam rotineiramente suas ruas, enquanto a natureza revelava sua face mais bela. O cenário era revestido de nuances exultantes, o sol aparecia radiante e trazia consigo a tonalidade relativa ao que estava preparado para acontecer.
O tráfego dos andarilhos era intenso, eles corriam na direção do seu ofício, muitos passavam todos os dias naquela mesma calçada, cruzavam as mesmas esquinas, subiam e desciam os degraus da escada da praça que dava acesso aos mais diversos lugares, e corriam contra o tempo. O relógio situado no centro da praça denunciava que a pressa passeava por lá.
Um homem de terno e gravata caminhava velozmente a passos largos, olhava a cada segundo para o relógio e vestia sua face de um ar casmurro. De repente, ele tropeçou numa pedra e caiu em meio aos papéis que saltaram de sua pasta. Levantou-se rapidamente e começou a correr atrás dos papéis que o vento levava, até que conseguiu apanhar todos, deu uma olhada ao redor para comprovar se alguém tinha dado conta do lapso do percurso, mas como era de se esperar, os outros também corriam com o olhar fixo no tempo. Do outro lado, vinha uma mulher distraída com uma escova de cabelo na mão, enquanto tentava se equilibrar no salto que calçava. De vez em quando, penteava o cabelo que se embaralhava.
E assim, os apressados passos iam se distanciando, enquanto vagarosamente o botão de uma flor se abria.

Kilvânia B. Gomes

Intrepidez de um coração

Ela falava com a alegria de quem simplesmente recebeu o que a vida lhe ofertou. Vitorina, mulher alta, magra, débil, corpo marcado pela dura sina da vida que levava. Sua face revelava as marcas do tempo, o cansaço transparecia no seu expressivo sorriso e seus olhos denunciavam sua ousadia.
Rotineiramente, ela acordava às cinco da manhã, fazia o café para todos, começava cedo os afazeres da casa. Depois, acordava os filhos e os preparava para suas atividades
Naquele dia, saiu para deixar a última papelada exigida pela escola que matriculara sua filha esse ano. A chuva estava alagando a rua que morava, mas ela saiu mesmo assim, já havia enfrentado outras chuvas para proporcionar o melhor para Carol, que era uma criança especial e necessitava de cuidados dobrados. Chegando lá, entregou os documentos na sala da coordenadora pedagógica e, a pedido desta, esperou para falar com a terapeuta.
A terapeuta entrou na sala com caneta e papel na mão. Dona Vitorina, de súbito, levantou-se da cadeira e cumprimentou-a.
— Bom dia.
— Oi, Dona Vitorina. Gostaria que a senhora me falasse um pouco da história da Carol.
A frágil mulher abriu um sorriso no rosto, denunciando sua contagiante alegria pela filha. Outras pessoas entraram na sala e se detiveram a observar aquela expressão. E a partir desse momento, as lembranças das páginas da sua vida fluíam em seus pensamentos e extasiavam o íntimo de quem a ouvia.
— Eu tive cinco filhos. Batalhei muito para conseguir criá-los. A vida não foi fácil para mim. Muitas vezes, deixei de comer para dar aos meus filhos o pouco que tinha, e quando tinha.
— E seu marido, dona Vitorina, o que fazia? – perguntou a terapeuta.
— Faleceu quando meus filhos eram pequenos. A partir daí, tive que fazer papel de pai e de mãe. A casa que eu moro até hoje era dos meus pais e estava caindo, porque era uma casa simples e velha. Depois que meu marido faleceu, eu fui morar com eles. E quando chegou a vez deles também partirem, fiquei só com os meninos. Com o pouco dinheiro que eles deixaram, tive que reformar a casa para que ela não desmoronasse.
— E depois a senhora criou os seus cinco filhos? – perguntou a terapeuta.
— Foi. Consegui criar todos, com muito esforço. E aí a Carol chegou.
A terapeuta, com os olhos arregalados, perguntou:
— Como chegou? A Carol não é a quinta?
— Não, respondeu dona Vitorina. É a sexta. Ela foi surpresa da vida.
Fez-se um silêncio triunfal. As duas, ali, estáticas, olhando para um ponto fixo na sala. A bondade de um coração humano estava totalmente revelada na bravura de um rosto cansado, porém feliz.

Kilvânia B. Gomes 


Memórias de um tempo

A vida nunca trouxe com facilidade o que lhe era necessário, mas Cecília tinha coragem suficiente para enfrentar as tempestades e não media esforços para conseguir o que queria. Como sua mãe sempre lhe dizia: “A vida não é fácil. É preciso muito esforço para vencer na vida”. E ela sempre lembrava das frases de sua mãe, antigamente não muito importantes, mas depois se tornaram verdadeiras alavancas, heranças das quais tomou posse.
         O ônibus seguia o percurso habitual. Conhecia cada avenida e o trajeto lhe proporcionava lembranças de um passado remoto que mais parecia presente. Trazia consigo resquícios de muitas histórias que se concretizaram no lugar que agora ela queria encontrar nem que fosse somente mais uma vez. A parada em frente à padaria se aproximava. Ela, que nunca fora incapaz de enfrentar qualquer situação, temeu por um instante, pois o que haveria de encontrar pela frente eram vestígios de uma vida construída; e não sabia qual seria sua reação ao revê-los depois de tanto tempo.
Absorta em seus pensamentos, puxou o sinal com tanta força que a corda quase arrebentou, era o modo de expressar o vigor que ela trazia consigo, único companheiro que não perdeu. Desceu as escadas da condução, entrou na padaria e automaticamente olhou extasiada para aquele espaço que lhe era tão familiar. Recordou da época em que ficava na ponta dos pés, na bancada da frente; e do dia em que seu Borges saiu anunciando à vizinhança que ela não mais se esticava para pegar o embrulho. As prateleiras ainda eram as mesmas, a diferença é que, agora, elas tinham sido revestidas com tinta preta e não havia mais sobre elas os doces recheados.
Seu Borges era um homem simples, contagiava todos com sua espontaneidade e suas brincadeiras. Sempre extraía uma deliciosa risada de quem chegava para comprar pão saído do forno. Ao se aproximar dele, o velho conhecido se levantou instantaneamente da sua cadeira de balanço, sorriu e perguntou seu nome. Cecília sabia que as marcas do tempo estavam em sua face, mas não tinha mudado tanto assim. Admirou-se do fato de seu Borges não reconhecê-la e, numa tentativa frustrada, perguntou:
— Olá, meu amigo. Lembra de alguém que comprava os deliciosos pães do seu Borges todos os dias? E os sonhos? Deliciosos.
Ele, com um sorriso no canto da boca, olhou para a moça de branco, ao seu lado, que logo tratou de fazê-lo sentar novamente. A princípio, Cecília não se deu conta do que estava acontecendo e – depois de alguns segundos de silêncio – a moça com a voz embargada perguntou:
— Quem é a senhora?
A sensação que Cecília tinha era de que tudo tinha ficado perdido no tempo. Seu Borges estava ali na sua frente com um olhar de assombro, tentando balbuciar algumas palavras, porém a moça logo interrompeu dizendo que ele estava com Alzehaimer e que ela era a enfermeira. No mesmo instante, entrou o filho mais velho do seu amigo. Tinha as mesmas feições do pai e o sorriso agradável de se ver, e também não reconheceu Cecília, pois o tempo não deixou resquícios na memória de quem outrora era uma criança.
Saiu da padaria como uma desconhecida, e por instantes não reconheceu a si mesma. Parecia que o próprio ambiente a ignorava, e somente ela era capaz de experimentar aquela sensação de fazer parte daquele lugar. Seus olhos estavam úmidos e suas mãos frias anunciavam que talvez fosse melhor desistir, continuar a caminhar até o final da rua poderia lhe trazer muita dor; e as lembranças que estavam vivas poderiam se perder no próprio espaço em que foram registradas. Mas não era mulher de desistir. E no seu ímpeto de chegar até a casa que ainda considerava sua, desceu a ladeira da rua que levava sua memória a passear por várias histórias de sua vida.
Parou um instante em frente à casa da Ritinha. Não era mais rosada, agora tinha uma cor verde-água. O portão estava entreaberto. Seu olhar se deteu em ver a porta que dava para a sala que tantas vezes pôde ver sua amiga abrir para que ela entrasse. Aquele espaço tão peculiar ainda lhe trazia o mesmo cheiro. De repente, surgiu um homem muito alto na sua frente, meio temeroso de lhe perguntar quem ela era. Antes de qualquer pergunta, ela baixou a cabeça, conteve as lágrimas e continuou a descida.
Percebia a transformação das cores das casas e trazia aos olhos a cor original. Detinha-se nos mínimos detalhes da rua, árvores que não mais existiam, e outras com as quais se deparava e olhava extasiada, não sabendo quem as poderia ter plantado. O latido do cachorro na casa da costureira ainda ressoava em seus ouvidos. A praça que avistava no final da rua ainda estava lá; o banco que costumava sentar dera lugar a um quiosque. O velho escorregador de cimento, no meio da praça, sobreviveu ao tempo e as crianças que outrora ali brincavam não estavam lá, mas para Cecília tudo naquele lugar se tornara impregnado de memórias indeléveis.
A rua parecia ter ganhado alguns metros. A casa que ainda considerava dela ficava perto da praça. Estava ansiosa para reencontrá-la e olhá-la, pelo portão, talvez pela última vez. Depois de alguns passos, ela avistou de longe o muro, agora alaranjado e mais alto. Cecília e o muro não se reconheceram. Ela fechou os olhos e deu meia volta.  Pela primeira vez, desistiu. Preferiu olhar de longe, porque de perto ainda existiam os móveis rústicos, esmerados e polidos cuidadosamente comprados à prestação com o dinheiro que ganhara no seu primeiro emprego.         

 Kilvânia B. Gomes